segunda-feira, 10 de setembro de 2018

Barra do Catimbó x Sapopemba


Marcos, Plinio. Na Barra do Catimbó: Editora do Autor, s/d, 125pp. (trecho extraído das páginas 50-53)

Por Moisés Basílio Leal


            Plínio Marcos é um escritor criativo, original e de com uma verve eloquente ao narrar as coisas das “quebradas do mundaréu”. Morreu fora do combinado, como diz Rolando Boldrin, com 64 anos, em 1999, mas nos deixou uma obra exemplar e que é pouco valorizada em nossa literatura.

            Veio do mundo marginal e praticou uma literatura marginal, na forma de escrever e de retratar a realidade social e ao colocar no centro de suas peças teatrais, artigos, contos e romances as personagens desse mundo como protagonistas e antagonistas, como é o caso nesse romance que retrata a favela da Barra do Catimbó e seus moradores.

            Arguto observador, Plinio Marcos em “Na Barra do Catimbó” faz uma narrativa literária do processo de crescimento desordenado da periferia da cidade São Paulo nas décadas dos anos de 1970 e 1980, aquilo que a sociologia conceituou de espoliação urbana. A combinação de uma nova ordenação da exploração do Capital com o regime autoritário brasileiro que criou as bases da precarização e espoliação da classe trabalhadora nos grandes centros urbanos. As favelas não se proliferaram por uma mero acaso, mas faziam parte do processo desordenado do crescimento econômico e desigual do país.

            Nesse modelo político, crescimento econômico e desigualdade fazem parte da mesma moeda. No seu romance, Plinio Marcos a partir do olhar do povão das “quebradas do mundaréu” mostra o nascimento desta nova sociabilidade, suas contradições e consequências. Um exemplo é como ele narra as ações dos bandidos e ladrões no interior da favela da Barra Catimbó nas figuras do bandido bom malandro (o negro Catimbó) e do bandido mal (Zecão) nas disputas pelas relações de poder numa comunidade que se forma sem ação de políticas públicas por parte do Estado. Outro exemplo é a disputa desse mesmo poder pela ação da religião, onde as religiões de matrizes africanas estão presentes e as igrejas de matrizes cristãs estão ausentes.

            Um importante detalhe me chamou atenção na obra, a citação de Sapopemba. Plinio Marcos sabia muito da geografia das “quebradas do mundaréu” da cidade de São Paulo e a citação do Sapopemba não está aí à toa. A região do Sapopemba nos anos de 1970 e 1980 é onde esse crescimento desordenado e desigual se dá de forma mais pungente na cidade. Nestas duas décadas a região teve um adensamento populacional enorme, principalmente com a formação de favelas em áreas públicas de fundo de vale e morros, como na fictícia Barra do Catimbó. 
 
            Por isso é emblemático o maior jogo de futebol vencido pelo time da Barra do Catimbó se dá em território sapopembense.

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Transcrição do trecho do romance Na Barra do Catimbó, Plínio Marcos, que cita Sapopemba:

... Seu Olegário pigarreou e, com sua voz rouquenha e com a autoridade de presidente, afirmou:
            - A nossa maior vitória, a maior de todos os tempos, foi a que a gente conseguiu contra o Estrela do Norte, um time de paraíba de obra que tinha campo lá pras banda do Sapopemba e que era metido a garantir resultado na peixeira. Pois a gente foi lá e carimbou eles. No campo deles.
            - E as peixeira, Seu Olegário?
            Seu Olegário mediu o perguntador, pigarreou mais uma vez, tomou um gole de cerveja e rosnou:
            - As peixeira eles teve que enfiar no cu, moleque. Foi ou não foi, Azulão?
            - Se o senhor tá dizendo, é que foi, Seu Olegário.
            O presidente correu a roda com os olhos, bebeu o copo de cerveja de uma só vez, limpou a boca com mão e, com sua voz rouquenha, prosseguiu:
            - Nós ganhamos eles de um a zero. Eles era invicto com nós. Nós acabamo com a alegria deles e continuemos mais nós. Agora, a verdade a gente diz. Essa vitória nó deveu ao Catimbó. Deveu ou não, Catiça?
            - Deveu. Mas a rapaziada que botem em campo não fez feio.
            - Nós foi lá com três caminhão de gente. Eles tinha umas dez vez mais gente pra garantir eles. Tudo na boca da espera, a fim de baixar o pau em nós. Uns quinhentos, eles tinha.
            - Bota gente deles nisso, Seu Olegário.
            - Era pra mais, Azulão?
            - Muito pra mais.
            - O que sei é que era gente pra caraio. O campo tava arrochadinho de cabeça-chata. Tava a três de altos com nego se agarrando pelos picos pra não espirrar pelo ladrão. Nós perto deles tava sem ninguém.
            - Mas não se afinamo.
            - Ah, isso não. Cheguemo maneiro, mas cheguemo pro desse e viesse. E entremo com a idéia de ganhar. Não foi, Catiça?
            - Também, botei um time encardido. Me lembro de cor até hoje. Nenê, Ranheta e Facada; Cativeiro, Chaminé e Bolbão; Chupeta, o falecido Zé Bigorna, o Chico Preto, o filha-da-puta do Piolhinho e o Chupim. Eta negada! Tudo eles ouriço. Mas conta o caso, Seu Olegário.
            Seu Olegário só olhou pra o Quim Ilhéu e ele entendeu que era para servir mais cerveja, o que fez rápido para não perder nenhum detalhe do caso. Seu Olegário esperou ser servido e só então continuou:
            - O jogo tava endurecido. Nós lá, eles cá. Eles cá, nós lá. Era bola com bola, pau com pau. Nós não entrava em campo, mas a torcida deles também não. Se alguém entra, ia feder. Nós tava ali. Até falemos pro Ranheta que se era para tirar o juiz, que ele podia tirar, que nós garantia. E o Ranheta acreditou. Tirou três juiz que eles botaram para roubar pra eles e botou três juiz pra roubar pra gente. Eles tirava o da gente e nós tirava os deles. Não tava fácil. Cda vez que ía tirar um juiz pra botar outro, era aquele quás-quás-quás do caraio. Parecia que ía ferver. Mas acabava indo pra frente. Uma zorra. Sabe como é, valia taça. Por falar nisso, Azulão, onde foi parar aquela taça que nós ganhou lá?
            - Nós perdeu ela no caminho. Nós deixou ela com aquele filho-da-puta do Melado e ele, bebum como uma vaca, deixou ela cair do caminhão e não falou porra nenhuma pra parar o caminhão e nós pegar a taça. Nós só viu quando chegou no pedaço. Aí, fizemo ele voltar a pé para achar o caneco e até hoje tamo esperando o corno filho-da-puta voltar com ela.
            - Tu tá confundindo essa taça com a que a gente ganhou do Corintinha da Vila Imaculada. Essa que o Melado perdeu. A do Estrela do Norte nós vendeu pro Bubu Intrujão pra poder pagar cerveja da festa. Se alemba, Seu Olegário?
            Meio embaraçado com a revelação do Catiça, que no entusiasmo estava revelando que eles vendiam o patrimônio do Amor e Glória, Seu Olegário continuou o caso, antes que alguém percebesse:
            - Mas nós ganhou essa taça por causa do Catimbó. O jogo tava duro. Zero a zero. Já tava escurecendo. A gente foi aí que um danado de um burro, que ninguém sabe de onde veio, entrou em campo e foi se plantar na nossa área. Bem perto do gol. Bicho filho-da-puta. Olha que entre nós e eles tinha mais de mil nego. Mil ou mais. Né, Azulão?
            - Bota gente nisso, Seu Olegário.
            - E aquela negada toda fez das tripa coração e o filho-da-puta do bicho não arredava. Dava coice. Queria morder. E não saía do lugar. Desgramado do bicho. Nós até tinha começado o enguiço pra trazer o caneco. Nós dizia: O burro é do campo de vocês, a taça é nossa. E eles vinha com papo de que nós é que levou o bicho pra complicar. A coisa começou a ficar encrespada. Já tava saindo uns empurra-empurra, uns tapão pra lá, outros pra cá, mais os diretor ainda tava naquela do deixa-disso. Só que eu já botei meu revólver no jeito. E tava naquele vai-não-vai,parecendo que ía, quando o Ctimbó que tava quieto berrou: “Eu tiro o burro dai”. Todo mundo duvidou. Mas o Catimbó se confirmou: “Eu tô dizendo que tiro essa porra daí e tiro mesmo. E quem for duvidar vai dividar da puta-que-pariu.” Um negrinho folgado quis azucrinar o Catimbó: “Então tira, porra.” Mas o compadre não se afobou. Meteu ficha: “Sou Amor e Glória até o cu criar bico. Por isso tem negócio. Se eu tirar o burro daí sozinho, é pênalti pra nós. Se eu não tirar o bicho, vocês fica com a porra da taça. Valeu?” Teve gente nossa que quis estranhar. Mas eu topei. Os paraíba de obra deles lá também topou. Porra, se todo aquele mundão de gente não tirou o bicho, não ía ser o negrão sozinho que ía tirar. Ficou tudo combinado. Então o Catimbó foi no burro e nem conversou. Deu um puta de um soco na cabeça do filho-da-puta do bicho. O burro nem tossiu nem peidou. Caiu duro. Não foi, Azulão?
            - Foi assim mesmo que foi, Seu Olegário. Como o senhor tá dizendo.
            - Aí, o Catimbó pegou o burro pelo rabo, arrastou ele prá fora do campo, jogou o bicho na vala e já foi berrando: “Vamo bater esse pênalti. Já matei um burro e não custa matar outro.” E eles meteram o galho dentro. Nós bateu o pênalti.
            - Quem chutou, Seu Olegário?
            - Quem sabe isso é o Catiça.
            - Foi o Chupim. Deu um puta bico na bola, que o gleiro deles nem viu onde ele foi. Foi na casa do caraio, lá no mato. Já tava escuro e eles foram procurar a bola, que era a única que eles tinha. Eu peguei a taça e nós veio simbora. Mas essa nós ganhou por causa do Catimbó. (páginas 50-53)


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