Marcos,
Plinio. Na Barra do Catimbó: Editora do Autor, s/d, 125pp. (trecho extraído das
páginas 50-53)
Por Moisés Basílio Leal
Plínio Marcos é um escritor criativo, original e de com uma
verve eloquente ao narrar as coisas das “quebradas do mundaréu”. Morreu fora do
combinado, como diz Rolando Boldrin, com 64 anos, em 1999, mas nos deixou uma
obra exemplar e que é pouco valorizada em nossa literatura.
Veio do mundo marginal e praticou uma literatura
marginal, na forma de escrever e de retratar a realidade social e ao colocar no
centro de suas peças teatrais, artigos, contos e romances as personagens desse mundo
como protagonistas e antagonistas, como é o caso nesse romance que retrata a
favela da Barra do Catimbó e seus moradores.
Arguto observador, Plinio Marcos em “Na Barra do Catimbó”
faz uma narrativa literária do processo de crescimento desordenado da periferia
da cidade São Paulo nas décadas dos anos de 1970 e 1980, aquilo que a sociologia conceituou
de espoliação urbana. A combinação de uma nova ordenação da exploração do
Capital com o regime autoritário brasileiro que criou as bases da precarização e
espoliação da classe trabalhadora nos grandes centros urbanos. As favelas não
se proliferaram por uma mero acaso, mas faziam parte do processo desordenado do
crescimento econômico e desigual do país.
Nesse modelo político, crescimento econômico e
desigualdade fazem parte da mesma moeda. No seu romance, Plinio Marcos a partir
do olhar do povão das “quebradas do mundaréu” mostra o nascimento desta nova
sociabilidade, suas contradições e consequências. Um exemplo é como ele narra
as ações dos bandidos e ladrões no interior da favela da Barra Catimbó nas
figuras do bandido bom malandro (o negro Catimbó) e do bandido mal (Zecão) nas
disputas pelas relações de poder numa comunidade que se forma sem ação de
políticas públicas por parte do Estado. Outro exemplo é a disputa desse mesmo
poder pela ação da religião, onde as religiões de matrizes africanas estão presentes
e as igrejas de matrizes cristãs estão ausentes.
Um importante detalhe me chamou atenção na obra, a
citação de Sapopemba. Plinio Marcos sabia muito da geografia das “quebradas do
mundaréu” da cidade de São Paulo e a citação do Sapopemba não está aí à toa. A
região do Sapopemba nos anos de 1970 e 1980 é onde esse crescimento desordenado
e desigual se dá de forma mais pungente na cidade. Nestas duas décadas a região
teve um adensamento populacional enorme, principalmente com a formação de
favelas em áreas públicas de fundo de vale e morros, como na fictícia Barra do
Catimbó.
Por isso é emblemático o maior jogo de futebol vencido
pelo time da Barra do Catimbó se dá em território sapopembense.
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Transcrição
do trecho do romance Na Barra do Catimbó, Plínio Marcos, que cita Sapopemba:
...
Seu Olegário pigarreou e, com sua voz rouquenha e com a autoridade de
presidente, afirmou:
- A nossa maior vitória, a maior de
todos os tempos, foi a que a gente conseguiu contra o Estrela do Norte, um time
de paraíba de obra que tinha campo lá pras banda do Sapopemba e que era metido
a garantir resultado na peixeira. Pois a gente foi lá e carimbou eles. No campo
deles.
- E as peixeira, Seu Olegário?
Seu Olegário mediu o perguntador,
pigarreou mais uma vez, tomou um gole de cerveja e rosnou:
- As peixeira eles teve que enfiar
no cu, moleque. Foi ou não foi, Azulão?
- Se o senhor tá dizendo, é que foi,
Seu Olegário.
O presidente correu a roda com os
olhos, bebeu o copo de cerveja de uma só vez, limpou a boca com mão e, com sua
voz rouquenha, prosseguiu:
- Nós ganhamos eles de um a zero.
Eles era invicto com nós. Nós acabamo com a alegria deles e continuemos mais
nós. Agora, a verdade a gente diz. Essa vitória nó deveu ao Catimbó. Deveu ou
não, Catiça?
- Deveu. Mas a rapaziada que botem
em campo não fez feio.
- Nós foi lá com três caminhão de
gente. Eles tinha umas dez vez mais gente pra garantir eles. Tudo na boca da
espera, a fim de baixar o pau em nós. Uns quinhentos, eles tinha.
- Bota gente deles nisso, Seu
Olegário.
- Era pra mais, Azulão?
- Muito pra mais.
- O que sei é que era gente pra
caraio. O campo tava arrochadinho de cabeça-chata. Tava a três de altos com
nego se agarrando pelos picos pra não espirrar pelo ladrão. Nós perto deles
tava sem ninguém.
- Mas não se afinamo.
- Ah, isso não. Cheguemo maneiro,
mas cheguemo pro desse e viesse. E entremo com a idéia de ganhar. Não foi,
Catiça?
- Também, botei um time encardido. Me
lembro de cor até hoje. Nenê, Ranheta e Facada; Cativeiro, Chaminé e Bolbão;
Chupeta, o falecido Zé Bigorna, o Chico Preto, o filha-da-puta do Piolhinho e o
Chupim. Eta negada! Tudo eles ouriço. Mas conta o caso, Seu Olegário.
Seu Olegário só olhou pra o Quim
Ilhéu e ele entendeu que era para servir mais cerveja, o que fez rápido para
não perder nenhum detalhe do caso. Seu Olegário esperou ser servido e só então
continuou:
- O jogo tava endurecido. Nós lá,
eles cá. Eles cá, nós lá. Era bola com bola, pau com pau. Nós não entrava em
campo, mas a torcida deles também não. Se alguém entra, ia feder. Nós tava ali.
Até falemos pro Ranheta que se era para tirar o juiz, que ele podia tirar, que
nós garantia. E o Ranheta acreditou. Tirou três juiz que eles botaram para
roubar pra eles e botou três juiz pra roubar pra gente. Eles tirava o da gente
e nós tirava os deles. Não tava fácil. Cda vez que ía tirar um juiz pra botar
outro, era aquele quás-quás-quás do caraio. Parecia que ía ferver. Mas acabava
indo pra frente. Uma zorra. Sabe como é, valia taça. Por falar nisso, Azulão,
onde foi parar aquela taça que nós ganhou lá?
- Nós perdeu ela no caminho. Nós
deixou ela com aquele filho-da-puta do Melado e ele, bebum como uma vaca,
deixou ela cair do caminhão e não falou porra nenhuma pra parar o caminhão e
nós pegar a taça. Nós só viu quando chegou no pedaço. Aí, fizemo ele voltar a
pé para achar o caneco e até hoje tamo esperando o corno filho-da-puta voltar
com ela.
- Tu tá confundindo essa taça com a
que a gente ganhou do Corintinha da Vila Imaculada. Essa que o Melado perdeu. A
do Estrela do Norte nós vendeu pro Bubu Intrujão pra poder pagar cerveja da
festa. Se alemba, Seu Olegário?
Meio embaraçado com a revelação do
Catiça, que no entusiasmo estava revelando que eles vendiam o patrimônio do
Amor e Glória, Seu Olegário continuou o caso, antes que alguém percebesse:
- Mas nós ganhou essa taça por causa
do Catimbó. O jogo tava duro. Zero a zero. Já tava escurecendo. A gente foi aí
que um danado de um burro, que ninguém sabe de onde veio, entrou em campo e foi
se plantar na nossa área. Bem perto do gol. Bicho filho-da-puta. Olha que entre
nós e eles tinha mais de mil nego. Mil ou mais. Né, Azulão?
- Bota gente nisso, Seu Olegário.
- E aquela negada toda fez das tripa coração e o
filho-da-puta do bicho não arredava. Dava coice. Queria morder. E não saía do
lugar. Desgramado do bicho. Nós até tinha começado o enguiço pra trazer o
caneco. Nós dizia: O burro é do campo de vocês, a taça é nossa. E eles vinha
com papo de que nós é que levou o bicho pra complicar. A coisa começou a ficar
encrespada. Já tava saindo uns empurra-empurra, uns tapão pra lá, outros pra
cá, mais os diretor ainda tava naquela do deixa-disso. Só que eu já botei meu
revólver no jeito. E tava naquele vai-não-vai,parecendo que ía, quando o Ctimbó
que tava quieto berrou: “Eu tiro o burro dai”. Todo mundo duvidou. Mas o
Catimbó se confirmou: “Eu tô dizendo que tiro essa porra daí e tiro mesmo. E
quem for duvidar vai dividar da puta-que-pariu.” Um negrinho folgado quis
azucrinar o Catimbó: “Então tira, porra.” Mas o compadre não se afobou. Meteu
ficha: “Sou Amor e Glória até o cu criar bico. Por isso tem negócio. Se eu
tirar o burro daí sozinho, é pênalti pra nós. Se eu não tirar o bicho, vocês
fica com a porra da taça. Valeu?” Teve gente nossa que quis estranhar. Mas eu
topei. Os paraíba de obra deles lá também topou. Porra, se todo aquele mundão
de gente não tirou o bicho, não ía ser o negrão sozinho que ía tirar. Ficou
tudo combinado. Então o Catimbó foi no burro e nem conversou. Deu um puta de um
soco na cabeça do filho-da-puta do bicho. O burro nem tossiu nem peidou. Caiu
duro. Não foi, Azulão?
- Foi assim mesmo que foi, Seu Olegário. Como o senhor tá
dizendo.
- Aí, o Catimbó pegou o burro pelo rabo, arrastou ele prá
fora do campo, jogou o bicho na vala e já foi berrando: “Vamo bater esse
pênalti. Já matei um burro e não custa matar outro.” E eles meteram o galho
dentro. Nós bateu o pênalti.
- Quem chutou, Seu Olegário?
- Quem sabe isso é o Catiça.
- Foi o Chupim. Deu um puta bico na bola, que o gleiro
deles nem viu onde ele foi. Foi na casa do caraio, lá no mato. Já tava escuro e
eles foram procurar a bola, que era a única que eles tinha. Eu peguei a taça e
nós veio simbora. Mas essa nós ganhou por causa do Catimbó. (páginas 50-53)
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