Comentários de Moisés Basílio:
A seguir um conjunto de reportagens publicadas no Jornal O Estado de S. Paulo sobre os 70 anos de habitação social. Parabéns ao jornal pela iniciativa no geral, mas em particular cabe ressaltar, em minha opinião, que faltou faro jornalístico para a editoria de reportagem do Estadão ao não incluirem o Conjunto Habitacional Marechal Mascarenhas de Moraes nessa série de reportagens. Longe de bairrismo, o Conjunto Mascarenhas de Moraes é um dos primeiros construídos pela COHAB-SP e marca um momento de transição, cuja característica é um meio termo entre os projetos habitacionais anteriores ao golpe militar e a nova proposta surgida com o BNH.
É importante salientar o embate político que se deu nesse período na cidade de São Paulo - entre 1966 e 1969 - governo do prefeito Faria Lima e que teve como presidente da COHAB-SP o empresário, que depois viria a ser presidente da FIESP, Mario Amato. Em seu livro bibliográfico, "80 anos de vida, 68 de trabalho: Mário Amato" de Luiz Ferreira Lima, Amato faz um relato das divergências entre o governo municipal e os dirigentes do BNH ligados ao governo da Ditadura Militar sobre a concepção de moradia social.
O projeto do BNH acabou triunfando na cidade de São Paulo a partir de 1969 quando é tramada a queda do prefeito eleito Faria Lima e posto em seu lugar, como interventor indicado pelos militares, a figura sinistra de Paulo Salim Maluf. Com Maluf no comando os blocos de concretos são erguidos em Carapicuíba e seguem rumo à periferia de S. Paulo. Para completar a malvadeza, na sua volta à prefeitura no período de 1993 a 1996, são construídos os conjuntos denominados Cingapura.
Faltou profundidade à reportagem. Um maior número de conjuntos habitacionais poderiam ter sido analisado em suas diversidades.
70 anos da Habitação Social em São Paulo
Veja o vídeo com uma síntese do conjunto de reportagens publicadas no jornal:
TV Estadão | 27.8.2011: http://tv.estadao.com.br/videos,70-ANOS-DA-HABITAO-SOCIAL-EM-SO-PAULO,145631,250,0.htm
Artigo: Moradia e (in)dignidade
Fonte: 27 de agosto de 2011 | 16h 00 - Jornal O Estado de S. Paulo
Autor: Milton Hatoum
Nos anos 70, quando eu estudava na Fau-Usp, um dos poemas mais lidos e comentados por estudantes e professores era “Fábula de um arquiteto”, de João Cabral.
O arquiteto: o que abre para o homem
(tudo se sanearia desde casas abertas)
portas por-onde, jamais portas-contra;
por onde, livres: ar luz razão certa.
(tudo se sanearia desde casas abertas)
portas por-onde, jamais portas-contra;
por onde, livres: ar luz razão certa.
Esses versos pareciam nortear a concepção e a organização do espaço, trabalho do arquiteto. A utopia possível de vários estudantes era transformar habitações precárias (eufemismo para favelas) em moradias dignas. O exemplo mais famoso e visitado naquele tempo era o Conjunto Habitacional Zezinho Magalhães Prado (Parque Cecap) em Guarulhos. Esse projeto de Vilanova Artigas era um dos poucos exemplos de habitação social decente, mas seus moradores não eram ex-favelados.
De um modo geral, a política de habitação popular no Brasil consiste em construir pequenos e opressivos apartamentos ou casas de baixo padrão tecnológico, sem nenhum senso estético, sem relação orgânica com a cidade, às vezes sem infra-estrutura e longe de áreas comerciais e de serviços públicos. Vários desses conjuntos habitacionais são construídos em áreas ermas, cuja paisagem triste e desoladora lembra antes uma colônia penal que uma moradia. Isso acontece de norte a sul do país. Em São Paulo, os conjuntos denominados Cingapura são verdadeiras aberrações arquitetônicas, que subtraem do ser humano toda dignidade relacionada com a cidadania. É como se uma família pobre saísse de uma favela e ocupasse uma espécie de abrigo, e não um lugar para morar.
Mas há mudanças e avanços significativos na concepção de projetos de habitação social, infra-estrutura, lazer e paisagismo, projetos que, afinal, dizem respeito à democracia e ao fim da exclusão social. Um desses avanços é o trabalho da Usina. Fundada em 1990 por um grupo de profissionais paulistas, a Usina tem feito projetos de arquitetura e planos urbanísticos criteriosos e notáveis, que contam com a participação dos moradores de bairros e comunidades pobres. Trata-se de uma experiência de autogestão na construção, cujos projetos, soluções técnicas e o próprio processo construtivo são discutidos coletivamente, envolvendo os futuros moradores e uma equipe de arquitetos, engenheiros e outros profissionais. Lembro que essa experiência era um dos temas debatidos na FAU na década 70, quando líamos textos de Sérgio Ferro e assistíamos com interesse às aulas de grandes professores como Flávio Motta, Rodrigo Lefrève, Flávio Império e Luis Carlos Daher e Renina Katz, entre outros. Nessa década brutalizada pela ditadura, a prática dos estudantes no canteiro de obras era uma aprendizagem incipiente e quase utópica, mas se tornou realidade em 1998, quando foi criado o “canteiro escola”, a que o professor e arquiteto Reginaldo Ronconi acrescentou a proposta do “canteiro experimental”, uma disciplina que faz parte da grade curricular da Fau-Usp. De algum modo, o trabalho coletivo da Usina relaciona-se com a prática do canteiro experimental, que, segundo Mônica Camargo, “é uma experiência pedagógica transformadora, que permite a compreensão das relações complexas entre teoria e prática, desenho e canteiro, técnica e estética”.
Em graus variados, são essas relações entre arquitetura e sociedade que norteiam a visão e a prática de alguns profissionais que lidam com habitação social no Brasil. A arquitetura é um processo, e não um mero desenho, como diz João Filgueiras (o Lelé), sem dúvida um dos arquitetos mais talentosos e inventivos do país. Além do trabalho coletivo da Usina, há outros projetos arquitetônicos e urbanísticos relevantes, que apontam para soluções inventivas.
Acompanhei jornalistas do Estadão em visitas a conjuntos habitacionais em Heliópolis e à represa Billings, onde está sendo implantado o “Programa Mananciais”. Em Heliópolis, Ruy Ohtake projetou edifícios em forma cilíndrica, daí o apelido de “redondinhos”. A planta dos apartamentos de 50 m2 é bem resolvida, os materiais de construção e o acabamento são apropriados, e todos os ambientes recebem luz natural. Na fachada circular, painéis com cores fortes dão vida ao edifício. Esse projeto de Ohtake, e o de Hector Vigliecca (ainda em fase de construção) revelam um avanço notável na concepção da moradia para as camadas mais populares. Mostram também que é possível e desejável enterrar de vez os vergonhosos projetos Cingapura e Cohab dos anos 80 e 90.
Um dos projetos do “Programa Mananciais” é uma ousada e bem-sucedida intervenção urbana (infra-estrutura, paisagismo e lazer) numa das áreas mais pobres e também mais belas da metrópole. Situado às margens da Represa Billings, o Parque Linear (que inclui o Residencial dos Lagos e o Jardim Gaivotas) é, em última instância, um projeto de cidadania que contempla milhares de famílias dessa área densamente povoada da Zona Sul. Não por acaso esse projeto da equipe do arquiteto Marcos Boldarini recebeu vários prêmios no Brasil e no exterior. Além do enorme alcance social, o projeto foi pensado para preservar a Billings e suas espécies nativas. Penso que a realização dessa obra de engenharia e arquitetura é um dos marcos do urbanismo brasileiro. Sem ser monumental, o Parque Linear é uma obra grandiosa e extremamente necessária, concebida com uma sensibilidade estética e funcional que dá dignidade a brasileiros que sempre foram desprezados pelo poder público. É também um exemplo de como os governos federal, estadual e municipal podem atuar em conjunto, deixando de lado as disputas e mesquinharias político-partidárias.
Além de ter arquitetos e engenheiros competentes, o Brasil possui também recursos para financiar projetos de habitação popular em larga escala, como prova o programa “Minha casa, minha vida”. Mas é preciso aliar a vontade política a uma concepção de moradia que privilegie a própria vida dos moradores e sua relação profunda com o meio ambiente e o espaço urbano. Já é tempo de acabar com edifícios-pombais e casas-cubículos, que mais parecem abrigos asfixiantes, construídos com materiais de quinta categoria e péssimo acabamento.
“Construir, não como ilhar e prender”, diz um verso de João Cabral. A sociedade e o Estado brasileiro podem e devem reparar essa injustiça histórica e dar a milhões de brasileiros pobres uma moradia humana, e não um abrigo ou teto. Porque morar é muito mais do que sobreviver em estado precário e provisório.
10% dos paulistanos vivem em conjunto habitacional
De projetos modernistas a Cohabs, a evolução da moradia social na cidade teve mais retrocessos que avanços
28 de agosto de 2011 | 0h 00
Vitor Hugo Brandalise - O Estado de S.Paulo
Um conjunto de 22 prédios modernistas, com 480 apartamentos, separados por jardins e áreas de lazer. Com boa iluminação e localizado a dois quilômetros da Praça da Sé - vencidos "em 15 minutos por meio do bonde". Projetado há 70 anos, o primeiro conjunto habitacional de São Paulo, o Várzea do Carmo, no Glicério, centro da capital, é reflexo no Estado da primeira política de habitação social do País, iniciada em 1942 pelo governo Getúlio Vargas.
Sete décadas depois do conjunto pioneiro, a capital paulista está prestes a atingir a marca histórica de 1,1 milhão de pessoas (10% da população da cidade) vivendo em unidades de moradia social, segundo levantamento inédito do Estado - desde os prédios modernistas dos Institutos de Aposentadoria e Pensão (IAPs) às Cohabs, Cingapuras e CDHUs construídos décadas depois. Trata-se de política que sempre foi dispersa e fragmentária - e cuja principal consequência, 70 anos depois, é o maior déficit de habitação do Brasil, com 520 mil pessoas sem moradia na capital.
Os números da produção das políticas habitacionais no Estado ilustram o quanto há pela frente. Hoje existem 277.969 unidades populares em conjuntos habitacionais na cidade. Até 2015, esse número deverá subir para 371.934, considerando os prédios já planejados pela Secretaria de Estado da Habitação (CDHU) e pela pasta municipal (Sehab). Quando isso ocorrer, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), 1,4 milhão de pessoas viverão em conjuntos habitacionais na cidade, ou 12% da população. Ainda assim, 1,8 milhão de pessoas ainda viverão em favelas e moradias precárias.
Na série de reportagens que começa hoje, o Estado mostra a evolução das tentativas públicas de construir moradia em São Paulo: do primeiro grupo de edifícios, projetado em 1942 seguindo os mesmos princípios da construção de Brasília, ao período das Cohabs, quando moradia social virou sinônimo de isolamento em "cidades-dormitório" - ou, como definem os moradores, simplesmente em "pombais": espaços apertados, úmidos, pouco iluminados, sem equipamentos de lazer. E distantes quilômetros dos centros urbanos.
Operários. O primeiro conjunto habitacional de São Paulo foi construído para dar teto a operários das indústrias gráfica e de vidros da região do Glicério. É resultado das medidas instituídas por Vargas para melhorar as condições dos assalariados - e garantir intervenção estatal em todos os setores da sociedade, até mesmo mercado imobiliário e construção civil. Além de moradia para os trabalhadores, os conjuntos dos IAPs - precursores do Instituto Nacional de Seguridade Social (INSS), que chegaram a construir 25% dos imóveis do Rio em 1940 - eram vistos como importante patrimônio da União. Por isso, tinham projetos inovadores e de qualidade.
O Várzea do Carmo ainda hoje está lá, na beira da Avenida do Estado - e não há morador que se queixe dos apartamentos. São prédios de quatro andares, com apartamentos de amplas janelas e até 60 m² de área, avaliados em R$ 200 mil. Mas fazem parte de um conjunto - e isso proprietários desconhecem - cujo projeto nunca foi executado integralmente.
Na versão original, o Várzea do Carmo teria 43 prédios de quatro andares e 16 de 11 andares. No fim, o governo decidiu construir apenas 22 prédios menores. Nenhum dos equipamentos de serviço - como os quatro prédios comerciais - saiu do papel. Os antigos jardins abertos, projetados sob o ideal moderno de devolver área livre à cidade, hoje são isolados por grades. E antigos equipamentos de lazer viraram garagens.
"Attilio propôs plano urbanístico que ainda hoje mantém sua atualidade: conjunto residencial articulado ao sistema de transportes coletivos, habitação econômica próxima ao centro e a locais de emprego, equipamentos sociais e serviços urbanos", escreveu o arquiteto e urbanista Nabil Bonduki, professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP (FAU-USP), no livro inédito Pioneiros da Habitação Social no Brasil, com publicação prevista até dezembro.
Quantidade. A partir da década de 1950, construção civil deixou de ser foco dos IAPs - os fundos passaram a ser utilizados para seu objetivo principal: pagar aposentadoria ao trabalhador. Para suprir a lacuna, em 1964, ano do golpe militar, foi fundado o Banco Nacional de Habitação (BNH), primeiro órgão de financiamento para construção de moradias do País.
A forma de atuar, então, mudou radicalmente: em São Paulo, a maior parte das 25 mil unidades financiadas pelo BNH foi construída pelo método pré-fabricado - começava a era da produção massiva, a ordem era quantidade, não havia mais preocupação com projeto arquitetônico. "Para o BNH, as intervenções em qualquer cidade eram sempre iguais: casas prontas, em terrenos baratos periféricos e desconsiderando especificidades urbanas, sociais e culturais", avaliou Bonduki. A atuação do BNH, portanto, foi determinante para que "conjunto habitacional" virasse sinônimo de moradia de má qualidade.
Na década de 1980 - quando o número de moradores de favelas na capital passou de 71 mil pessoas em 1973 para 812 mil em 1987 -, os reflexos dessa política foram multiplicados. A Companhia de Habitação de São Paulo (Cohab, criada em 1965) viveu seu momento de maior produção - no total, construiu 138 mil unidades, 49% do total da cidade. Com a migração de habitantes das regiões Norte e Nordeste do País para a cidade e as primeiras remoções de favelas, a solução escolhida foi construir enormes conjuntos afastados do centro - o maior exemplo são os de Cidade Tiradentes, no extremo leste da capital, a 30 quilômetros da Sé. É o maior aglomerado de conjuntos habitacionais do Brasil, onde vivem 147 mil pessoas (o maior do Rio, o Dom Jaime Câmara, por exemplo, abriga 26 mil).
Após a redemocratização, as cidades passaram a ter maior participação nas política habitacional. "Com maior conhecimento local e participação da comunidade, boas iniciativas surgiram, como mutirões e políticas de autogestão. Mas sempre em pequena escala", avalia a urbanista Ana Paula Koury, doutora pela Universidade de São Paulo (USP). "A saída é construir moradia com que a pessoa se identifique, como foi feito nos primeiros anos. Depois, houve retrocesso. Ainda hoje o País paga por isso", afirma.
A vida na cidade dentro da cidade

Só no maior dos conjuntos, o Santa Etelvina - onde vivem 107 mil pessoas, ou 73% de todo o aglomerado -, foram construídos mais de 1 mil puxadinhos. Projetados como garagens, são locados informalmente entre os moradores. Neles funcionam lanchonetes, padarias, lan houses, igrejas evangélicas, lojas de roupas, pastelarias, estúdios de tatuagem. "Foi a forma que a comunidade encontrou para viver. Todo mundo se vira como pode", disse Viviane Barbosa, de 29 anos, dona de uma loja de doces que funciona em uma antiga garagem.
O Estado revelou ontem na primeira reportagem desta série que, sete décadas depois do primeiro conjunto habitacional da cidade, 10% dos paulistanos (ou 1,1 milhão) vivem em unidades de moradia social. Ainda assim, o déficit na cidade é de 520 mil pessoas sem moradia. Cidade Tiradentes, o "bairro dormitório" que nunca parou de crescer, com seus puxadinhos e favelas resume os principais erros cometidos nesse período. "A primeira razão é o isolamento. Foi construído a 30 km do centro. As carências de um local não integrado à cidade se refletem nessa área até hoje", diz a historiadora Simone Lucena Cordeiro, que organizou livros sobre habitação social e cuja tese de doutorado na PUC-SP foi sobre Cidade Tiradentes.
O complexo Santa Etelvina foi iniciado em 1984, quando habitação social se resumia a construção em massa de unidades idênticas, sem respeitar diferenças sociais e culturais e desconsiderando carências de infraestrutura. Esse modelo predominou no País a partir da criação do Banco Nacional de Habitação (BNH), em 1964, durante o regime militar, e atingiu seu auge em São Paulo nas décadas de 1980 e 1990 - período em que a Companhia de Habitação de São Paulo (Cohab) mais construiu.
Emprego. A explicação para o surgimento do comércio informal foi a falta de estímulo para que os moradores consigam trabalho no próprio conjunto. "Emprego por aqui não tem. Desde que minha família chegou, removida da Brasilândia, todo mundo sempre trabalhou fora. São três a quatro conduções todos os dias para mim, meu irmão e minha mãe", contou a promotora de vendas Tatiana Aparecida de Almeida, de 32 anos, que leva 3h30 para chegar ao emprego, em Guarulhos. "Tiradentes fica isolada mesmo. Todo mundo já acostumou, não tem banco nem casa lotérica. Um ou outro caixa eletrônico e só. De "Cidade", só tem o nome."
No meio de vários conjuntos, formou-se a Favela Maravilha - cujos habitantes são, principalmente, familiares de moradores dos complexos e ex-proprietários das unidades que não conseguiram se manter ali. "O conjunto estava caindo aos pedaços e os "noias" tomavam conta. Deixava roupas no varal e, um dia depois, já não estavam mais. Se é para construir e deixar de lado, não adianta", disse o vigia Fernando Henrique Duarte, de 33 anos, que viveu por dois anos em um conjunto e depois voltou para a favela. "Tenho família morando ali, mas eu não volto mais", afirma.
Quando a Maravilha ainda estava se formando, no início dos anos 2000, outra leva de imóveis começou a ser construída pela Cohab no Santa Etelvina - eram casas de dois andares, em setor conhecido como "Casinhas". É um dos pontos, segundo moradores e assistentes sociais, completamente dominado pelo tráfico. "Tem dia que nem carteiro entra. E polícia, de jeito nenhum. É o tráfico que regula quem entra e quem sai", diz uma moradora.
A Prefeitura afirma que, nos últimos cinco anos, a preocupação com o perfil do morador é maior. "Sabemos da necessidade de identificação do morador com sua casa", diz a superintendente de Habitação Popular da Secretaria Municipal de Habitação (Sehab), Elisabete França.
Sete décadas depois do conjunto pioneiro, a capital paulista está prestes a atingir a marca histórica de 1,1 milhão de pessoas (10% da população da cidade) vivendo em unidades de moradia social, segundo levantamento inédito do Estado - desde os prédios modernistas dos Institutos de Aposentadoria e Pensão (IAPs) às Cohabs, Cingapuras e CDHUs construídos décadas depois. Trata-se de política que sempre foi dispersa e fragmentária - e cuja principal consequência, 70 anos depois, é o maior déficit de habitação do Brasil, com 520 mil pessoas sem moradia na capital.
Os números da produção das políticas habitacionais no Estado ilustram o quanto há pela frente. Hoje existem 277.969 unidades populares em conjuntos habitacionais na cidade. Até 2015, esse número deverá subir para 371.934, considerando os prédios já planejados pela Secretaria de Estado da Habitação (CDHU) e pela pasta municipal (Sehab). Quando isso ocorrer, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), 1,4 milhão de pessoas viverão em conjuntos habitacionais na cidade, ou 12% da população. Ainda assim, 1,8 milhão de pessoas ainda viverão em favelas e moradias precárias.
Na série de reportagens que começa hoje, o Estado mostra a evolução das tentativas públicas de construir moradia em São Paulo: do primeiro grupo de edifícios, projetado em 1942 seguindo os mesmos princípios da construção de Brasília, ao período das Cohabs, quando moradia social virou sinônimo de isolamento em "cidades-dormitório" - ou, como definem os moradores, simplesmente em "pombais": espaços apertados, úmidos, pouco iluminados, sem equipamentos de lazer. E distantes quilômetros dos centros urbanos.
Operários. O primeiro conjunto habitacional de São Paulo foi construído para dar teto a operários das indústrias gráfica e de vidros da região do Glicério. É resultado das medidas instituídas por Vargas para melhorar as condições dos assalariados - e garantir intervenção estatal em todos os setores da sociedade, até mesmo mercado imobiliário e construção civil. Além de moradia para os trabalhadores, os conjuntos dos IAPs - precursores do Instituto Nacional de Seguridade Social (INSS), que chegaram a construir 25% dos imóveis do Rio em 1940 - eram vistos como importante patrimônio da União. Por isso, tinham projetos inovadores e de qualidade.
O Várzea do Carmo ainda hoje está lá, na beira da Avenida do Estado - e não há morador que se queixe dos apartamentos. São prédios de quatro andares, com apartamentos de amplas janelas e até 60 m² de área, avaliados em R$ 200 mil. Mas fazem parte de um conjunto - e isso proprietários desconhecem - cujo projeto nunca foi executado integralmente.
Na versão original, o Várzea do Carmo teria 43 prédios de quatro andares e 16 de 11 andares. No fim, o governo decidiu construir apenas 22 prédios menores. Nenhum dos equipamentos de serviço - como os quatro prédios comerciais - saiu do papel. Os antigos jardins abertos, projetados sob o ideal moderno de devolver área livre à cidade, hoje são isolados por grades. E antigos equipamentos de lazer viraram garagens.
"Attilio propôs plano urbanístico que ainda hoje mantém sua atualidade: conjunto residencial articulado ao sistema de transportes coletivos, habitação econômica próxima ao centro e a locais de emprego, equipamentos sociais e serviços urbanos", escreveu o arquiteto e urbanista Nabil Bonduki, professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP (FAU-USP), no livro inédito Pioneiros da Habitação Social no Brasil, com publicação prevista até dezembro.
Quantidade. A partir da década de 1950, construção civil deixou de ser foco dos IAPs - os fundos passaram a ser utilizados para seu objetivo principal: pagar aposentadoria ao trabalhador. Para suprir a lacuna, em 1964, ano do golpe militar, foi fundado o Banco Nacional de Habitação (BNH), primeiro órgão de financiamento para construção de moradias do País.
A forma de atuar, então, mudou radicalmente: em São Paulo, a maior parte das 25 mil unidades financiadas pelo BNH foi construída pelo método pré-fabricado - começava a era da produção massiva, a ordem era quantidade, não havia mais preocupação com projeto arquitetônico. "Para o BNH, as intervenções em qualquer cidade eram sempre iguais: casas prontas, em terrenos baratos periféricos e desconsiderando especificidades urbanas, sociais e culturais", avaliou Bonduki. A atuação do BNH, portanto, foi determinante para que "conjunto habitacional" virasse sinônimo de moradia de má qualidade.
Na década de 1980 - quando o número de moradores de favelas na capital passou de 71 mil pessoas em 1973 para 812 mil em 1987 -, os reflexos dessa política foram multiplicados. A Companhia de Habitação de São Paulo (Cohab, criada em 1965) viveu seu momento de maior produção - no total, construiu 138 mil unidades, 49% do total da cidade. Com a migração de habitantes das regiões Norte e Nordeste do País para a cidade e as primeiras remoções de favelas, a solução escolhida foi construir enormes conjuntos afastados do centro - o maior exemplo são os de Cidade Tiradentes, no extremo leste da capital, a 30 quilômetros da Sé. É o maior aglomerado de conjuntos habitacionais do Brasil, onde vivem 147 mil pessoas (o maior do Rio, o Dom Jaime Câmara, por exemplo, abriga 26 mil).
Após a redemocratização, as cidades passaram a ter maior participação nas política habitacional. "Com maior conhecimento local e participação da comunidade, boas iniciativas surgiram, como mutirões e políticas de autogestão. Mas sempre em pequena escala", avalia a urbanista Ana Paula Koury, doutora pela Universidade de São Paulo (USP). "A saída é construir moradia com que a pessoa se identifique, como foi feito nos primeiros anos. Depois, houve retrocesso. Ainda hoje o País paga por isso", afirma.
A vida na cidade dentro da cidade
Maior complexo habitacional do País fica em Cidade Tiradentes, zona leste
29 de agosto de 2011 | 0h 00
Vitor Hugo Brandalise - O Estado de S.Paulo
Quase 37 mil apartamentos, em cerca de 1,4 mil prédios, onde vivem 147 mil pessoas. O maior aglomerado de conjuntos habitacionais do Brasil, em Cidade Tiradentes, extremo leste da capital, tem população superior a 596 dos 645 municípios de São Paulo. Nunca parou de receber novas unidades, mas, como não foram planejados setores para comércio e serviços, milhares de "puxadinhos" foram construídos. Além dos anexos ilegais, mesmo no meio do conjunto que mais recebeu investimento dos governos estadual e municipal, há também favelas e áreas dominadas pelo tráfico. 
Paulo Liebert/AE
Crescimento. Tatiana de Almeida com a filha de 8 anos; população é maior que 596 das 645 cidades paulistas
Só no maior dos conjuntos, o Santa Etelvina - onde vivem 107 mil pessoas, ou 73% de todo o aglomerado -, foram construídos mais de 1 mil puxadinhos. Projetados como garagens, são locados informalmente entre os moradores. Neles funcionam lanchonetes, padarias, lan houses, igrejas evangélicas, lojas de roupas, pastelarias, estúdios de tatuagem. "Foi a forma que a comunidade encontrou para viver. Todo mundo se vira como pode", disse Viviane Barbosa, de 29 anos, dona de uma loja de doces que funciona em uma antiga garagem.
O Estado revelou ontem na primeira reportagem desta série que, sete décadas depois do primeiro conjunto habitacional da cidade, 10% dos paulistanos (ou 1,1 milhão) vivem em unidades de moradia social. Ainda assim, o déficit na cidade é de 520 mil pessoas sem moradia. Cidade Tiradentes, o "bairro dormitório" que nunca parou de crescer, com seus puxadinhos e favelas resume os principais erros cometidos nesse período. "A primeira razão é o isolamento. Foi construído a 30 km do centro. As carências de um local não integrado à cidade se refletem nessa área até hoje", diz a historiadora Simone Lucena Cordeiro, que organizou livros sobre habitação social e cuja tese de doutorado na PUC-SP foi sobre Cidade Tiradentes.
O complexo Santa Etelvina foi iniciado em 1984, quando habitação social se resumia a construção em massa de unidades idênticas, sem respeitar diferenças sociais e culturais e desconsiderando carências de infraestrutura. Esse modelo predominou no País a partir da criação do Banco Nacional de Habitação (BNH), em 1964, durante o regime militar, e atingiu seu auge em São Paulo nas décadas de 1980 e 1990 - período em que a Companhia de Habitação de São Paulo (Cohab) mais construiu.
No meio de vários conjuntos, formou-se a Favela Maravilha - cujos habitantes são, principalmente, familiares de moradores dos complexos e ex-proprietários das unidades que não conseguiram se manter ali. "O conjunto estava caindo aos pedaços e os "noias" tomavam conta. Deixava roupas no varal e, um dia depois, já não estavam mais. Se é para construir e deixar de lado, não adianta", disse o vigia Fernando Henrique Duarte, de 33 anos, que viveu por dois anos em um conjunto e depois voltou para a favela. "Tenho família morando ali, mas eu não volto mais", afirma.
Quando a Maravilha ainda estava se formando, no início dos anos 2000, outra leva de imóveis começou a ser construída pela Cohab no Santa Etelvina - eram casas de dois andares, em setor conhecido como "Casinhas". É um dos pontos, segundo moradores e assistentes sociais, completamente dominado pelo tráfico. "Tem dia que nem carteiro entra. E polícia, de jeito nenhum. É o tráfico que regula quem entra e quem sai", diz uma moradora.
A Prefeitura afirma que, nos últimos cinco anos, a preocupação com o perfil do morador é maior. "Sabemos da necessidade de identificação do morador com sua casa", diz a superintendente de Habitação Popular da Secretaria Municipal de Habitação (Sehab), Elisabete França.
Na Vila Madalena, uma 'Cohab chique'
Condomínio Natingui tem apartamentos de 68 m² que valem até R$ 300 mil
30 de agosto de 2011 | 0h 00
Vitor Hugo Brandalise - O Estado de S.Paulo
Entre as centenas de conjuntos habitacionais projetados em São Paulo pelo antigo Banco Nacional da Habitação (BNH) - o órgão que mais financiou unidades no País - o Condomínio Natingui, na Vila Madalena, zona oeste de São Paulo, apresenta uma diferença que garantiu seu futuro: boa localização e qualidade de projeto arquitetônico. O resultado é que hoje, 43 anos depois de inaugurado, seus 55 prédios com apartamentos de 68 m² de área já valem até R$ 300 mil. E o conjunto recebeu dos vizinhos o apelido de "Cohab chique". 
Paulo Liebert/AE
Organização. Maria Regina, da associação de moradores: praça reformada se tornou ponto de encontro
O condomínio hoje é dividido entre Natingui I e Natingui II. Ali, estudantes universitários e arquitetos dividem espaço com familiares dos primeiros moradores.
O conjunto foi construído em 1968, quando o BNH (fundado em 1964) ainda seguia conceitos que marcaram os primeiros anos da habitação social no Brasil.
Mais tarde, a partir de fins da década de 1970, o órgão ficou conhecido pela construção em massa de unidades idênticas, ignorando diferenças sociais e culturais - modelo que predominou no País durante o regime militar e atingiu seu auge em São Paulo nas décadas de 1980 e 1990.
Conforme revelou o Estado na série de reportagens que começou no domingo e se encerra hoje, sete décadas depois da construção do primeiro conjunto habitacional da cidade - o Várzea do Carmo, no Glicério -, 10% dos paulistanos (ou 1,1 milhão de pessoas) vivem em unidades de moradia social.
O Condomínio Natingui, integrado à cidade e com projeto que garante boa habitação por décadas, é exemplo de um conjunto habitacional que deu certo. "Quem vive aqui gosta. O lugar vem mudando, a padaria da esquina foi derrubada para entrar uma de grife, mas aqui dentro, no condomínio, continuamos vivendo em um desses lugares que chamamos de "oásis" dentro da cidade", elogia a dona de casa Maria Rosa Antonioni, de 53 anos, que vive no conjunto há duas décadas.
A qualidade do projeto, segundo especialistas em habitação, é uma das razões principais para o sucesso da moradia social. "É simples: quem gosta cuida", explica a historiadora Simone Lucena Cordeiro, estudiosa da habitação social na cidade.
No caso do Natingui, quando problemas surgiram, os moradores se mobilizaram para corrigi-los: no início dos anos 2000, a "Praça do BNH", como é chamada a área verde no meio do conjunto, estava abandonada e havia virado ponto de uso e venda de drogas. "Criamos uma associação e cobramos taxa mensal para conseguir fazer uma reforma. Hoje, a praça é o ponto de encontro da vizinhança", garante a professora de História Maria Regina Acquarone, de 49 anos, presidente da Associação dos Moradores do Condomínio Natingui. "As babás dos condomínios chiques trazem as crianças para passear, o pessoal faz jogging e tem campeonatos de skate. A praça ganhou vida de novo."
Mesmo com todo o cuidado de moradores, algumas características do conjunto foram modificadas: hoje, grades separam cada prédio (antes havia jardins) e o térreo, antes área de livre circulação, foi adaptado para receber garagens. Alguns moradores entraram na Justiça para poder construir "puxadinhos", também usados como garagem.
Localização. Para o arquiteto e urbanista Nabil Bonduki, especialista em habitação social, três fatores beneficiaram o conjunto: localização ainda próxima do centro, método construtivo anterior aos pré-fabricados que marcaram as construções do BNH e valorização do entorno. "Alguns conjuntos, como esse e outro próximo do Alto de Pinheiros, foram beneficiados pelo período em que o BNH ainda não se preocupava somente em construir unidades em massa." Bonduki lança, até dezembro, o livro Os pioneiros da Habitação Social no Brasil, que vai contar a evolução dos conjuntos habitacionais no País, com projetos de mais de 300 conjuntos de todo o Brasil.
Cingapuras estão rodeados por favelas
Conjuntos habitacionais foram criados na década de 1990, na gestão Paulo Maluf, justamente para remover favelas de áreas da cidade
30 de agosto de 2011 | 0h 00
Vitor Hugo Brandalise - O Estado de S.Paulo
Remover favelas e construir no lugar conjuntos habitacionais para seus moradores. O Projeto Cingapura, maior programa de habitação social da cidade durante a década de 1990 - criado na gestão Paulo Maluf (1993-1996) e que continuou na administração de Celso Pitta (1997-2000) - construiu 17 mil moradias na cidade. Sem acompanhamento das famílias que foram removidas, porém, quase 10 anos depois de encerrado, grande parte dos 49 Cingapuras da cidade está rodeada de favelas."Os conjuntos do Projeto Cingapura foram construídos sempre em vias de grande movimento, mais para dar visibilidade do que para solucionar o problema. Podem ser vistos como grandes "outdoors" de uma política de habitação que não funcionou", avalia a arquiteta e urbanista Ermínia Maricato, do Laboratório de Habitação da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP (FAU-USP).
Durante a gestão Maluf, foram removidas 15 mil pessoas de favelas - quatro vezes mais do que o número de unidades construídas em Cingapuras. "O resultado é que as favelas voltam", disse Ermínia. Entre os pontos visitados pelo Estado, como os Cingapuras da Água Funda, da Imigrantes e de Interlagos, todos na zona sul, é comum encontrar pessoas que foram retiradas das favelas e depois voltaram. "Removeram a favela e depois foram embora, sem acompanhar. Aí o pessoal volta, né?", disse a líder comunitária Angela Antunes, de 48 anos, moradora do Cingapura Imigrantes.
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